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Michael Fincke se tornou ontem o americano com mais dias fora da Terra, naquela que foi a última caminhada espacial da missão STS – 134. Alguém que conceba 377 dias na ausência de gravidade pode imaginar Mr. Fincke dando rodopios em torno do próprio eixo ao som de uma valsa de Strauss, fazendo bolhas d’água parecerem de sabão ou vendo as estrelas mais brilhantes em um céu negro em vez de azul. Sem as inconveniências do atrito, seus impulsos no vácuo fazem moonwalk parecer uma brincadeira de criança, e pela concavidade do seu capacete é possível enxergar nas estradas do Wyoming ao sul da Califórnia pequenas rugas de um planeta estonteantemente belo. No único dia de ontem, caso tivesse disposição, Mr. Fincke poderia aplaudir o pôr-do-sol dezesseis vezes, pois noventa minutos é o tempo que ele e os outros cinco tripulantes gastam para dar uma volta completa em torno da Terra. É como se a cada início de partida do Corinthians saíssem do Pacaembu, passassem pelo Estádio Olímpico de Seul e retornassem ao campo paulista antes do apito final.

Hoje acordou com música, como de costume. Galaxy Song, uma melodia country sobre estar de pé em uma esfera girando a 900 milhas por hora, de onde se reza para que exista vida inteligente do lado de fora. Mr. Fincke está do lado de fora.

As tarefas do dia serão mais simples, como substituir uma das camas absorventes de gás carbônico para que o ar do Endeavour permaneça respirável, redimensionar dois trajes que serão usados por engenheiros de voo em uma missão futura e completar as transferências entre o ônibus espacial e a Estação Espacial Internacional – a ISS. É um dia bom para falar com os da Terra através do programa de rádio amador. Agora, por exemplo, o comandante e o piloto conversam com estudantes de uma escola do Arizona. Daqui a pouco gravarão uma participação no Voice of America.

A janela de comunicação é curta, de não mais que dez minutos.

Talvez Mr. Fincke não consiga pronunciar pa-ra-í-ba. Talvez – muito provavelmente – não saiba que do nome de árvore derivaram um substantivo próprio e um adjetivo hostil. Neste exato momento, flutua a 800 mil metros de altura a uma velocidade de 26 mil quilômetros por hora, fazendo a Paraíba medir, da sua perspectiva, não mais que alguns centímetros.

– Boa tarde. Aqui é Mr. Michael Fincke falando da ISS.

A essa altura Ulysses saiu para almoçar. Havia tentado algumas chamadas e desistido ao perceber que seu programa de rastreamento de satélites havia indicado uma posição falsa do Endeavour. Outro programa, do Google, corrigiu a localização, mas parecia tarde.

Correu da cozinha e agarrou o microfone.

– Boa tarde, aqui é Mr. Ulysses de Assis Neto, prefixo PU7-GUA, falando do Nordeste do Brasil.

– Olá, Mr. Assis. Prazer em conhecê-lo.

– O prazer é todo meu. Sou um grande admirador do seu trabalho e falo de João Pessoa, do ponto mais oriental das Américas.

– Interessante, Mr. Assis. Daqui a dezessete minutos estarei na África do Sul, tenho que desligar. Foi um prazer falar com o senhor.

Hoje Mr. Assis se tornou o radioamador brasileiro de mais sorte. Mais emocionante – diriam os praticantes do esporte – só se o contato fosse com outra galáxia. Formado em administração e direito, Mr. Assis enveredou pelo universo do clipping. Alguém que conceba sua odisséia de 24 horas imaginará milhares de programas de rádio e sites de notícias explorados e depois compilados em relatórios para clientes tão distintos quanto uma emissora de TV e uma loja de eletrodomésticos. Também pode imaginá-lo protegido por uma cabine de ar condicionado, ouvindo forró ou martelando caranguejos em Tambaú. Radioamadorismo é paixão que vem de adolescente. Certa vez, ajudou uma tripulação à deriva a voltar pra casa, nas Ilhas Canárias, passando sua localização para a guarda costeira local. Até o dia de hoje, sua melhor memória havia sido de quando captou uma mensagem de João Paulo II ao presidente Lula durante o retorno do avião pontífice para a Itália. Mr. Assis é um homem de fé. Acredita que um sopro divino permitiu que tudo virasse matéria, do Big Bang às precisões cartográficas do Google. Em sua imagem de perfil no Facebook, uma foto ao lado do padre Marcelo Rossi.

– Mas uma coisa intrigante é a comunicação. Eu falei com Michael Fincke no espaço mas até hoje não consegui que ele me seguisse no Twitter.

Ulysses de Assis Neto conversou com o astronauta Michael Fincke na tarde de 28 de maio de 2011. Anteontem teve alguns dedos de prosa com Emanuella Sombra, que escreve às quintas-feiras, quinzenalmente.

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